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Profissionais destacam importância do depoimento especial em casos de abuso sexual

Depoimento especial é realizado por técnicos capacitados, em ambiente neutro, amigável e livre de distração

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SANTA CATARINA – É um crime mais comum do que se imagina. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, 20% das mulheres e quase 8% dos homens sofreram abuso sexual na infância. Essa violência silenciosa, sem testemunhas, em 96% dos casos não deixa marcas no corpo, ou seja, a palavra da vítima é a única prova possível. Mas como ouvir esta criança sem lhe causar mais sofrimento? Quais técnicas utilizar para que ela acesse a memória e possa contar o que aconteceu? Em qual ambiente deve ser colhido este depoimento?

Estas perguntas iniciais gestaram o depoimento especial no Brasil – e ele surgiu com um ato de rebeldia. Em 2003, o então juiz da Infância e Juventude de Porto Alegre, José Antônio Daltoé, hoje desembargador, depois de colher o testemunho de uma criança vítima de abuso, utilizando os procedimentos adotados até então, disse: “assim não faço mais”. A partir daí, Daltoé e diversos profissionais de todo o Brasil começaram a pensar uma nova maneira de ouvir as vítimas – de uma forma mais humanizada, mais eficaz e que protegesse a criança. Inspirado em experiências internacionais, a ideia prosperou e, 15 anos depois daquela audiência, enfrentando também muita resistência, entrou em vigor a Lei n° 13.431/2017 que instituiu o depoimento especial no país.

Realizado por técnicos capacitados, em ambiente neutro, amigável e livre de distração, o depoimento especial, antes chamado de depoimento sem dano, é um procedimento de entrevista investigativa, centrado no relato livre, sem interrupções, com dois objetivos específicos: permitir que a criança acesse na memória o episódio e fale tudo o que lembra sobre ele.

Porém, o foco não é apenas a produção de possíveis provas, mas o cuidado com essa criança e com esse adolescente. Por isso, a maneira como se faz esta entrevista se tornou tão importante nos últimos anos. Só técnicos capacitados estão habilitados para a tarefa e devem seguir protocolos científicos, comprovadamente eficientes e seguros.

O depoimento especial, explica o psicólogo forense Ricardo Luiz De Bom Maria, não deve ser um espaço para condenar ou inocentar quem quer que seja, mas para clarificar determinada situação. Ele elenca vários aspectos importantes nesse procedimento: deve ser baseado na escuta e não na inquirição; não se pode, de maneira nenhuma, sugestionar a criança ou o adolescente, por isso é importante fazer perguntas abertas; deve-se respeitar o tempo e o ritmo de quem está falando, aceitando as pausas e o silêncio. “A entrevista é um direito e não um dever da criança ou do adolescente”, esclarece Bom Maria.

Além disso, o depoimento especial trouxe duas mudanças fundamentais. A criança é ouvida uma única vez no processo. Antes, a média era de nove vezes o que, obviamente, causava abalos emocionais na vítima, obrigada a relembrar e narrar o evento traumático em diversas ocasiões. Outro ponto importante foi dar celeridade ao processo – a criança faz o relato entre dois e seis meses depois da denúncia. Anteriormente, poderia demorar até cinco anos e, como se sabe, o tempo é aliado do agressor. Quanto maior a distância entre o fato e o relato, mais difícil é acessar com clareza o que aconteceu.

A Justiça catarinense, seguindo um protocolo científico, com base na psicologia do testemunho, já realiza essas entrevistas em 71 cidades – isso representa 80% do Estado. Além de salas estruturadas e totalmente equipadas, com isolamento acústico, mesas de som e câmaras de vídeo, as comarcas contam com 80 profissionais capacitados. O juizado de violência doméstica da Capital, por exemplo já fez mais de 100 depoimentos especiais. “Nossos esforços, desde o começo, estão centrados na capacitação destes técnicos. Isto, para nós, é o mais importante, este é o ponto principal do nosso projeto”, enfatiza a psicóloga Helena Berton Eidt, da Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude (CEIJ), do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Estes técnicos, servidores do Judiciário, participam de um curso de 56 horas, em três etapas, mesclando teoria e prática. Eles são psicólogos, assistentes sociais ou oficiais da infância e juventude, geralmente com formação em Direito. A psicóloga Lilian Stein, professora universitária e referência internacional no assunto, formou 12 multiplicadores no Estado – são eles que ministram esses cursos. “A forma, o jeito e a técnica de perguntar e ouvir a criança impactam diretamente na qualidade da informação”, disse Lilian.

Um novo curso – já é a 7ª edição – começou na segunda-feira passada (12/5), na sede do Tribunal, com a presença de 12 alunos. Entre eles está Márcia Lúcia Weber, assistente social da Comarca de Cunha Porã, extremo oeste de Santa Catarina. “A alta demanda e os indícios de que isso está acontecendo na cidade foram minha principal motivação para participar deste curso. Preciso estar preparada para atender essas pessoas”, explica. Há também cursos para magistrados e promotores. Nestes casos, o objetivo é fazer com que o magistrado e o representante do Ministério Público entendam o que o técnico responsável pelo depoimento especial está fazendo. O interesse por parte dos juízes é bastante expressivo e a há fila de espera para fazer o curso.

“Não existe uma única forma de fazer a entrevista investigativa”, explica Helena. “Nós, aqui no Poder Judiciário catarinense, escolhemos alguns protocolos, com base em estudos da memória, do desenvolvimento e da psicologia do testemunho, área que analisa a capacidade da criança em relatar, lembrar e falar”, diz. Depois da capacitação, se faz um processo administrativo e isso envolve a Diretoria de Engenharia e Arquitetura, a Diretoria de Tecnologia e Informação, Diretoria de Material e Patrimônio. Elas são responsáveis pela estruturação da sala da comarca.

Segundo definição da Organização Mundial da Saúde, o abuso sexual – uma das formas mais graves de maltrato infanto-juvenil – é entendido como “o envolvimento de uma criança em uma atividade que ela não compreende totalmente, para a qual não tem habilidade de dar consentimento ou não está preparada ou ainda que viole leis e tabus da sociedade”. Ela é definida ainda como uma atividade que objetiva “prover prazer, estimulação ou gratificação sexual a um adulto, que usa uma criança para este propósito, tirando vantagem de sua posição dominante”.

Punir e tratar estes agressores é muito importante. Mas dar atenção maior a essa vítima e, acima de tudo, protegê-la, é fundamental para enfrentar e lidar com esta realidade, presente em todos os países e em todas as classes sociais.  O ato de rebeldia do então juiz José Antônio Daltoé, depois daquela audiência em 2003, se tornou um símbolo de esperança e de justiça. Como resumiu o juiz Luciano Fernandes da Silva, titular da comarca de Ponte Serrada, no oeste catarinense, “a gravidade dos crimes e a fragilidade das vítimas fazem todo o nosso esforço valer a pena”.

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