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Incêndio da boate Kiss completa 6 anos sem julgamento de réus

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BRASIL – Neste domingo, 27, em meio à comoção nacional pela ruptura da barragem da Vale em Brumadinho (MG), outra tragédia de grandes proporções completa seis anos: o incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, cidade gaúcha onde 242 pessoas morreram e mais de 600 ficaram feridas.

(Marilice Daronco/VEJA)

Até hoje, o incêndio mais mortífero do Brasil, depois da tragédia no Gran Circus Norte-Americano em Niterói (RJ), em 1961, quando 503 pessoas morreram, segue sem condenados. Enquanto a Justiça decide se haverá ou não júri popular para os réus, as famílias organizam homenagens às vítimas. A luta dos familiares, amigos e sobreviventes da tragédia é para que não haja esquecimento do caso.

“A gente sabe que um processo do volume desses, com tantas vítimas, tem um trâmite mais demorado. Mas para nós, pais, é uma eternidade, é cruel. A Justiça está demorando e isso nos deixa com o gosto amargo da injustiça”, afirma Flavio Silva, pai de Andrielle Righi Silva, uma das vítimas do incêndio.

Da lista de 28 responsabilizados — dezesseis deles indiciados — pela Polícia Civil, apenas quatro ainda podem ser condenados. Os quatro réus são: os músicos Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos, que disparou o artefato pirotécnico que causou o incêndio no palco da boate, e os antigos donos da casa, Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, e MauroLondero Hoffmann, o Maurinho. Todos eles chegaram a ser presos, mas acabaram soltos.

O impasse na Justiça é sobre como será o julgamento. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) decidiu que não haverá júri popular. Esta decisão significou que os quatro réus seriam julgados por homicídio culposo e não por homicídio com dolo eventual (quando o acusado, por suas ações, assume o risco de matar). O Ministério Público tenta reverter a decisão por meio de um recurso especial tramita junto ao Superior Tribunal de Justiça em Brasília.

Procurados por VEJA, os advogados de Santos e de Hoffmann preferiram não se manifestar. Para Jader Marques, que defende Elissandro Spohr, o que havia a ser decidido sobre a questão do júri popular já foi julgado.

“Obviamente uma tragédia aconteceu, mas ela não contava com a aquiescência dos proprietários ou dos demais acusados. Eles não aceitaram esse risco diante da previsibilidade dos resultados, não concordaram com esse resultado mesmo com a existência dos riscos” afirmou o advogado que espera um julgamento sem dolo eventual, pelo juiz de Santa Maria. Gilberto Weber, que defende o outro integrante da banda declarou apenas que se aguarda decisão superior para que se tenha conhecimento sobre o julgamento do processo.

A impressão de membros da Associação de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) é que o país acabou esquecendo o que ocorreu na cidade.

O que causou a tragédia foram vários fatores, como omissão, corrupção, e o que faz que ocorram matanças é a falta da punição. Quando uma tragédia como essa é esquecida, não é punida, se abre o leque para que outras aconteçam – defende Silva.

 Vigília vinda de São Gabriel chega ao local onde funcionava a boate

Vigília vinda de São Gabriel chega ao local onde funcionava a boate (Marilice Daronco/VEJA)

Uma série de atividades marca a semana na cidade. Um dos momentos mais emocionantes é a vigília que se repete todos os anos em frente à boate. Ainda na quinta-feira, começou uma cavalgada que saiu do interior do município de São Gabriel e chegou sábado à tarde a Santa Maria. Os 30 integrantes percorrem mais de 160 quilômetros a cavalo para se juntar à vigília e homenagear amigos que morreram na Kiss.

No sábado, também ocorreu o Seminário de Prevenção de Tragédias Evitáveis, discutindo questões como prevenção, o papel da mídia e direitos humanos. No domingo, haverá exposição de fotos, apresentações artísticas, ato ecumênico, lançamento de revista com artigos sobre a tragédia e explanações sobre o memorial que deverá ser construído onde está o prédio da Kiss.

“Carrego este peso de não poder ter salvado todos”

 Gerson da Rosa Pereira, então major dos Bombeiros

Gerson da Rosa Pereira, então major dos Bombeiros (6º BBM Santa Cruz do Sul/Divulgação)

Na madrugada da tragédia da boate Kiss, o então major dos bombeiros Gerson da Rosa Pereira estava à frente dos salvamentos no local. Dois anos depois, em 2015, ele aparecia nas manchetes de todo o país em uma posição bem diferente: foi o primeiro condenado no caso, acusado de fraude processual, por ter inserido um croqui (projeto arquitetônico) e um laudo populacional que não estavam originalmente no Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI) da Boate Kiss.

Passados quatro anos, o agora tenente-coronel, que conversou com VEJA na última quinta-feira, é comandante dos Bombeiros de Santa Cruz do Sul, cidade a 142 quilômetros de Santa Maria. Depois de vários recursos na Justiça, a pena de Pereira prescreveu em dezembro do ano passado. Ou seja, seu processo está arquivado e ele não é mais considerado condenado nem tem de cumprir qualquer tipo de pena.

Na entrevista, o ex-chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros de Santa Maria quebrou o silêncio, lembrou da madrugada de horror em que viu centenas de corpos amontoados dentro da casa noturna,  negou ter fraudado documentos, apesar de ter chegado a ser condenado por isso, e afirmou que as mudanças ocorridas até hoje na legislação não são capazes de evitar novas tragédias.

Confira a entrevista:

Veja – Quais são as primeiras lembranças que o senhor tem daquele 27 de janeiro em relação à tragédia?

Gerson da Rosa Pereira – Me recordo de estar chegando à Rua dos Andradas (rua em que ficava a boate) pela parte de baixo dela, só via um grande número de pessoas e veículos de emergência e outros particulares aglomerados entre a Boate Kiss. Pessoas correndo desesperadas de um lado para o outro como se estivessem atordoadas com o que estava acontecendo. Lembro-me de muitos corpos uns sobre os outros em cada espaço que eu entrava na Boate. Uma cena chocante que ainda hoje revivo diuturnamente e que sei que não sairá de minhas lembranças por se tratar de um stress pós-traumático. Vi e vejo rostos de muitas pessoas que compartilhavam suas vidas comigo e minhas filhas, de amigos e familiares. Isto povoa meu imaginário até os dias de hoje.

Veja – Se nós fizermos o exercício de fechar os olhos agora, o que vem à sua cabeça sobre a madrugada do incêndio?

Pereira – Um cenário horripilante e inimaginável até para profissionais experientes como nós do Corpo de Bombeiros Militar. Um cenário de guerra, de tragédia sem ter como dimensionar seu tamanho. Lembro-me daqueles 30 corpos enfileirados no estacionamento, já sem vida, e nos vários corpos empilhados em alguns espaços da boate. Celulares tocando, bombeiros dando seu melhor como se acreditando que ainda pudessem salvar alguém, inclusive alguns com familiares que estariam na Boate, incluindo a mim.

Veja – Na época da tragédia, foi bastante divulgado o fato de que as suas filhas costumavam frequentar a boate. Alguma vez a superlotação da Kiss tinha preocupado o senhor, como bombeiro ou como pai?

Pereira – Tudo me preocupa. Quando saem à rua em razão da criminalidade que não tem limites até os espaços públicos por nós frequentamos diariamente. Claro que me preocupava, mas os mecanismos de coação que tínhamos e temos continuam ineficientes, sem falar em nossa cultura de crer que nada nos acontecerá, que as coisas só acontecem com o vizinho.

Veja – É verdade que o senhor tinha proibido suas filhas de irem à boate aquela noite?

Pereira – Tive a coragem de dizer não, e cumpri minha obrigação como pai.

 Veja – Os bombeiros foram criticados por deixar jovens ajudar no socorro. Por que vocês decidiram correr esse risco?

Pereira – Muitas pessoas estão com sequelas pulmonares e psicológicas por terem ajudado naquele dia. Creio que a crítica devesse ser feita à instituição que deveria ter isolado o local para atuação do Corpo de Bombeiros Militar. Ninguém fala, mas nossa instituição com outras instituições salvou mais de 600 pessoas naquele dia, coisa que ninguém valorizou. Ninguém tinha noção da letalidade do gás cianeto que era expulso daquele ambiente. A iniciativa daqueles jovens vai além de nossa compreensão, mas acima de tudo, é de uma postura humanitária de ajudar, coisa que o comandante da operação avaliou como razoável. Nunca aqueles jovens poderiam imaginar que seriam acometidos horas depois de problemas pulmonares que os levaram a óbito por inalação daquela fumaça tóxica.

Veja – De acordo com o Ministério Público, o senhor teria inserido no arquivo da boate, no Corpo de Bombeiros, documentos que não faziam parte do plano de prevenção contra incêndio da Kiss. O senhor fez isso?

Pereira – Claro que não! Cansei de repetir a mesma coisa. Aquele documento que tanto falaram se tratava de um croqui com mero cálculo populacional que foi usado durante todo o subsídio às autoridades públicas envolvidas. Serviu de esclarecimento ao governador do Estado, ao secretario de Segurança do Estado, à presidente da República e tantos outros entes públicos para prestar a correta informação à imprensa. Se eu realmente quisesse enganar alguém, me daria ao trabalho de colocar o que a portaria exigia, que no caso concreto, eram plantas baixas da edificação, memorial de extintores, memorial de saídas de emergência, memoriais de iluminação e tantas outras exigências da portaria e não tão somente um mero croqui. Parece que todo mundo ensurdeceu e ninguém queria ver a verdade. Tenho minha consciência tranquila.

Veja – Em 2015, o outro bombeiro aceitou um acordo para a suspensão condicional do processo. Por que o senhor não aceitou também?

Pereira – Não aceitei transacionar no Juizado Criminal porque como tenho dito: aprendi com meu pai que a verdade não se transaciona ela não é mercadoria, ela é um bem inegociável. Seria mais cômodo e covarde aceitar o pagamento de pouco mais que R$84,00 (oitenta e quatro reais) e calar diante de tanta injustiça e mentira que me rodearam. Uma carreira de quase trinta anos dedicado a salvar vidas atirada na vala numa sucessão de dias. Esperava justiça, mas tenho certeza que Deus a esta fazendo. Inclusive disse para determinada autoridade que não queria que ela pagasse nem mais, nem menos, apenas passasse o que eu passei! Mas, não tenho ódio e nem quero vingança, porque isso compete a um ser superior e não a mim. Estou com minha consciência livre que é o que me importa. Não morri porque não cheguei logo na ocorrência, mas tenho problemas de saúde que tratei e que não sei se não serei vitima futuramente, sem falar nas sequelas psicológicas que vou carregar para o resto de minha vida, que afetaram minhas relações familiares e com amigos.

Veja – O senhor foi condenado, em 2015, qual a sua opinião sobre isso?

Pereira – Alguém tinha que ser responsabilizado, entendo isso, a justiça humana é falha. Nossa instituição foi massacrada, logo nós, que doamos nossa vida para salvar a vida dos outros todo o santo dia. Muita maldade. Tinham que dar uma resposta para os pais, eu até entendo, quase estaria também integrando o grupo dos pais que clamam justiça, pois minhas filhas estariam lá. Como não ter alguém responsável? Apenas foram muito imediatistas e nos atacaram.

Veja – O senhor acredita que, com as mudanças que aconteceram na legislação no país, novas tragédias serão evitadas? Será suficiente?

Pereira – Não serão! As coisas continuam acontecendo. Tivemos aumento de prazo para as vistorias dos bombeiros, praticamente dobrou, ou seja, se alguém alterar a configuração de sua edificação e houver uma mudança em sua carga de incêndio, ninguém vai ficar sabendo. Falaram tanto que na época nós queríamos celeridade no processo de liberação dos alvarás, hoje não mudou nada! O discurso é o mesmo: pressa na liberação. Hoje, o sistema permite que alguém faça o preenchimento de suas informações  e todo o processo online e logo o responsável está com seu alvará, e tem casos que os bombeiros não são obrigados nem a vistoriar, ou seja, eu invento que vou fazer um  bar, quando os bombeiros em atividade de rotina inventam de conhecer o estabelecimento, deparam com uma Boate Kiss!! Mudou alguma coisa? Me afigura que não. E o pior, o Corpo de Bombeiros Militar não participou do processo de construção da lei, atuou como mero coadjuvante, ou seja, para nos penalizar, pode tudo, agora, para participar do processo e contribuir para uma norma mais segura, passamos ao largo. Meu trabalho de conclusão de curso institucional da carreira que corresponde ao doutorado nas universidades civis demonstrou isso. Fiz um paralelo entre a lei 10.987 e a lei Kiss no Estado e me ficou muito claro isso. Houve avanços, mas retrocessos muito pontuais.

Veja – O senhor teria feito algo diferente naquela noite?

Pereira – Nada diferente do que fiz. Mas se tivesse poder sobrenatural, teria salvado todas aquelas crianças que me doem tanto ainda hoje, como se tivesse perdido 242 filhos! Carrego este peso de não poder ter salvado todos, assim como todos meus bombeiros militares que estiveram lá.

Veja – Por que este ano, depois de tanto tempo, o senhor concordou em falar sobre o caso?

Pereira – É o momento de tentar desconstruir tanta coisa que vejo e sempre vi como mentira, que feriu minha honra, dilapidou minha carreira honesta e leal. Quase acabaram com a minha vida, porque o processo de depressão te leva ao suicídio se não for cuidadosamente acompanhado. Enfim, não que tudo que pensam vá mudar, mas sinto que se fazendo isso estarei fazendo um bem pra mim mesmo e para aqueles bombeiros que tiveram suas vidas podadas, seu orgulho ferido com tanta maldade. Queria abraçar cada pai, cada mãe, cada tio, cada avô, avó todos aqueles que perderam alguém! Nós, Bombeiros Militares, lamentamos muito. Queríamos salvar todos, não conseguimos, porque todos somos culpados quando as coisas acontecem e devemos cobrar de todos uma sociedade mais segura, justa e responsável. Nós somos meros instrumentos da sociedade, e nem tudo que o poder público ou privado faz somos coniventes ou solidários, somos, sim, ferozmente contrários, mas sempre ou quase sempre vencidos. Tenho pedido desculpas por tudo que aconteceu, não porque somos culpados mas por não termos força de mudar muita coisa que acontece, muitos interesses econômicos, políticos e tantos outros que nos são impostos.

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